Olá pessoal,
Para contextualizar a fotografia de hoje, usarei o texto de um colega, o qual descreveu perfeitamente o viver Belo Horizonte em sua mais pura singeleza...
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Caravulgar
Uma vez um amigo me perguntou como é viver no Brasil, e logo tratei de lhe dizer que tal resposta não existe, que este país são tantos que tal sentimento único seria de impossível definição.
Sobre o meu chão, Belo Horizonte, tentei lhe explicar, que de tão complicado, composto no nome e nas raízes, era, na verdade, muito simples. Curioso, ele me indagou o porquê. Ora, isto, como todo mineiro sabe, é história, ou, melhor dizendo, histórias.
Viver em Belo Horizonte é um ser diferente e um ser o mesmo. É representar o estado do ouro, da Inconfidência, do leite e da política, em gozo do contato com Rio de Janeiro, São Paulo, Espírito Santo, Bahia, Goiás e Brasília, sem saber ao certo onde começamos e onde terminamos.
É suceder a bela Ouro Preto, eternamente guardada e conservada, para dar espaço ao progresso iminente. De ciclos em ciclos arquitetônicos, destruímos, reconstruímos, destruímos de novo e reconstruímos novamente, infinitamente, em busca da modernidade que já tínhamos sem sabê-la. Se a história colonial já nos parecia distante, nosso sonho magnânimo do século XX também esmiuçou-se pelas brisas que vinham do Sul, de bonde ou trem, recortando, fragmentando e colando a memória em adaptações urgentes, traçando novos caminhos, irradiados, complexos, às vezes turvos, porém nunca distantes diante do atalho à primeira esquina de 45º.
As esquinas, nossos corações que encontramos e perdemos, explodindo cruzamentos de avenidas, sempre com um olhar atento à próxima paixão secreta, nas brechas, entre as árvores, pessoas, postes, fiações e placas, não para que vejamos, mas para que vislumbremos um momento único, que mais óbvio ou menos óbvio, mata o tédio, nos rompe a tristeza ou a alegria, as lágrimas ou o riso.
Solitários ou acompanhados, choramos sem saber o porquê, e rimos de tudo e de nós mesmos, palhaços alquimistas, transformadores da raiva egoísta na perda do ego, da melancolia no bucolismo.
Fazemos de nosso esquecimento o segredo da tranqüilidade, que alivia nossos pés cansados de trabalho e encontros e acasos e ônibus e carros e táxis e rodovias e escadarias e bancas de revistas e assaltos e compras e contas e filas e festas e família e casas de amigos e calouradas e passeatas e bares e butecos e Comida di Buteco e excessivos eventos culturais e clubes e pubs e boates e restaurantes e shows e concertos e churrascos e jantares de negócios e reuniões e porres e acidentes e piscinas e feriados e rodoviária e aeroportos e trilhas e acampamentos e cachoeiras e viagens para praias e viagens para as cidades históricas e velórios e carnavais e hospitais e feira hippie e mercado central e futebol e vôlei e corrida e academias e morros que nem carros sobem e museus e museus e Praça da Liberdade e Inhotim e convenções e palestras e cinemas e exposições e desfiles e inaugurações e despedidas e bibliotecas e livrarias e sebos e cafeterias e Minascentro e Expominas e Palácio das Artes e teatros e FIT e FITO e FIQ e a puta que pariu e parques e praças e mirantes e vias-expressas e favelas que não são morros porque tudo é morro e viadutos e mais viadutos e túneis sob túneis e estações e passarelas e complexos e trincheiras e elevados e Afonso Pena trash até a Afonso Pena cool e Praça 7 e Praça Raul Soares e Savassi e Pampulha e todos os bairros que conhecemos como a palma de nossas mãos e outros tantos que nunca ouvimos falar e os que nunca iremos conhecer além do nome no ônibus e saudades e anseios e a ordem inversa de subir Bahia e descer Floresta que nunca fez sentido, mas sentido se perde quando e enquanto falamos até nos esquecermos. E pousa no além.
O além onde a contemplação cresce e o fim a fé desconhece, mas ele nos espreita, nus e abandonados. Dobramos a atenção, que ainda não nos custa nada, porque se custasse, aí seria diferente. Continuamos para o além, da nossa direção tridimensional, além, além, além da latitude e da longitude, guiada pelo relevo arredio de nossas serras, nossas únicas imagens sagradas e imutáveis, nosso lado indomável, nosso feroz animal de estimação de todo dia, que nos protege e nos faz experimentar o monumento e o medo.
Nos quadros instantâneos que capturamos prendemos a forma e a contra-forma, o ranger do solo contra os bairros sobre os morros gerais que trarão a escolha do melhor caminho e, se calhar, a sabedoria do tempo que gastamos pensando em como aproveitar o tempo em meio ao caos.
Pelas estradas e pelas tragédias, que são nossas e de mais ninguém, carregamos a nossa desgraça e a nossa alma ainda viva nos braços, em dunas de edifícios, nem muito profundos nem muito esguios. Viajamos mais com os olhos do que com o corpo, o lugar do pé é no chão. Rodamos pelo novo que se ergue a trancos sobre barrancos, em concreto, aço, granito, vidro e tinta, e o antigo nos parece tão belo quanto nossos mendigos, tão valiosos quanto nosso silêncio.
O silêncio aqui tem seu lugar, e quando não podemos mantê-lo o rasgamos como o jornal de ontem, de clássica, rock, pop, samba, bossa, forró, sertanejo, axé, jazz, r&b, hip hop, rap, eletrônica, salsa, surf, moda de viola, o que quiser junto, misturado, mixado e Clube da Esquina.
Cortamos as palavras com a faca do queijo, costuramos tudo novamente com as agulhas das costureiras de Santa Tereza, retiramos os termos que não nos parecem necessários ao separarmos o feijão do almoço de domingo e inventamos novos, tão novos que seus sentidos escapam de nós mesmos, mas os mantemos lá, enfeitando a sala de visitas, um presente velado. Clamamos por uma atenção breve pela palavra e dela nos despedimos com um sorriso, para aliviá-la de seu peso sobre a terra e o ar, porque muitas vezes preferiríamos tê-las evitado, como a cachaça da semana passada.
Ser reservado é como ser educado. Seguimos nos resumindo para não desperdiçar o tempo, diminuindo o mundo para nos aproximarmos e nos comunicarmos mais à vontade, fluindo palavras que, de tão próximas, parecem querer se abraçar, ou até mais. Através da afinidade da linguagem, em que meia (ou até uma fração menor) palavra basta, entramos em simbiose com nossas companhias, subindo e descendo, encurtando e alongando os dizeres, moldando e pintando os tons sobre a argila do artesão.
O capricho não está no todo, mas nos detalhes do que nos inspira maior importância. Fazer-se claro e objetivo é utilizar-se de olhares e expressões que podem dizer tudo ou nada, de sons curtos que brotam de nossas bocas, da terra e do asfalto, ora doces, ora duros, ora enigmáticos como a matéria da qual advém.
Nos voltamos para nós mesmos mais uma vez. Desaceleramos uma reflexão, outra observação, anotação concentrada e distraída antes de outro mergulho. Não curamos as nossas mazelas ou nossas misérias, mas nos afastamos dos riscos. Saltitamos pelo muro entre a convenção e o desejo mais inevitável e despudorado em sua ingenuidade, cujo estouro é uma surpresa mais notável aos olhos alheios que aos nossos. Agarramos uma última certeza, para sentir a camada rígida do solo mineral que nos une e desenha na linha do horizonte nossos limites, que nos impedem e nos desafiam à transposição de terras abençoadas e rios lendários, efeito este que para nós parece inexistir em quem cruza tais limites no sentido contrário.
Por notável boa vontade, quase feito, vos recebemos desconfiados, ainda que nossa simplicidade quase viciosa, disfarçada da gentileza e do calor que perdemos nas amigáveis sombras das árvores de nossos caminhos poluídos, acabe por nos escapar e nos tranqüilizar, mais uma vez.
Sentimos o gosto do novo que procuramos desde que aqui estamos, e assim que o sentimos o perdemos e fingimos para nós mesmos que ele ainda está lá enquanto tateamos entre a sincronia oposta e recortada. Nossas retas há muito tornaram-se curvas, amaciando o concreto e nossas preocupações, cujo mar distante não pode acalmar.
Nos desfazemos e nos refazemos do tato à procura do assombro, do incrível, da surpresa. Não do pioneirismo ou do reconhecimento, quando nem os nossos percebemos, mas do oposto perfeito à megalomania, do que está ao lado, tão real que podemos tocá-lo e cheirá-lo, tão irreal quanto os vilões heróicos nos quais depositamos nossos símbolos, nos fantasiamos de italianos, espanhóis, portugueses, japoneses, ingleses, chineses, franceses, e todos os eses e exes que nos encantam e nos aterrorizam nas esquinas.
O dia nasce novamente como um código de posturas que alimenta o corpo. Entre as montanhas somente luz. O calor sempre se atrasa, descongelando nossos corações um pouco mais tarde. Nossos prantos e nossos sonhos foram esquecidos novamente graças à noite, ao conforto e à comida. Se não corresponderam às nossas altas expectativas, um bom café há de resolver, melhor ainda em uma mesa, em uma prosa, sobre a qual nossas reclamações constantes cairão por terra e cairão sobre nós até cairmos com elas e nos levantarmos rumo à próxima esquina.
A poeira brilha sobre as fontes e as praças. O frio evoca a memória dos invernos passados que poliram nossas peles. O verão relembra tempestades anteriores, que lavaram nossas durezas e nossas sujeiras com a esperança dos ipês recoloridos, por nós e conosco. Acendemos velas por eles em nossas mentes.
Lembramos agora do que nos parece verdadeiro, do que levaremos para um dos inúmeros caminhos que poderemos pegar, sem saber ao certo o percurso do destino eterno. O jornal que ontem rasgamos não nos serve mais, se enterra, com livros de páginas amareladas e fotografias em jpeg. Revela-se o mistério do mistério e não precisamos mais nos encontrar. Veja só, nunca estivemos perdidos.
Nos lapidamos nos outros e os outros se lapidam em nós como se o céu limpo se espelhasse na lagoa cristalina de um passado que lembramos sem pesar. Uma casa não menos vazia que um dos antigos prédios art déco, um velho músico vagando levemente pela rua, as sombras das árvores projetando sombras pelo passeio, crianças correndo e um sino de uma igreja ao pôr-do-sol, o banco da praça visto do último andar, as luzes amarelas dos postes sobre a calçada portuguesa, uma dança na esquina acompanhada pelo vento do outono, um sorriso irônico no meio fio de um bar mal iluminado, o dilatar da pupila de olhos negros conforme o ritmo da música, atores de um só palco. De qualquer um uma poesia se desprende e se despede.
- por Rafael Magalhães